Dra. Vanessa Jacob comenta sobre o contrato de fomento mercantil

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O contrato de fomento mercantil e a possibilidade de se pactuar

cláusula de regresso ou de recompra (de natureza “pro solvendo”)

O “factoring” é definido pela melhor doutrina como a relação jurídica estabelecida entre duas empresas, por meio da qual uma delas entrega à outra um título de crédito, recebendo, como contraprestação, o valor constante do título, do qual se desconta uma certa quantia, considerada como remuneração (fator) pela transação.

Em sua origem, a operação de “factoring” era constantemente confundida com prática de agiotagem e operação bancária, sobretudo desconto bancário. No entanto, tal se debitava ao desconhecimento por parte da comunidade em geral, relativamente ao tipo de serviços prestados por essas empresas de fomento mercantil e sua importância para a alavancagem mercadológica das empresas de micro, pequeno e médio porte.

No Brasil, muito embora essa atividade ainda não se encontre regida por lei específica, passou a ser reconhecida com a expedição da Circular nº. 703/1982, do Banco Central do Brasil – BACEN, posteriormente revogada pela Circular de nº. 1359/1988, também do BACEN. Todavia, foi a Instrução Normativa nº. 10, de 10 de dezembro de 1986, da lavra do então Diretor-Geral do Departamento Nacional de Registro do Comércio – DNRC, que se revestiu de suma importância para promover a distinção entre operação de fomento mercantil e operação bancária, ao autorizar os órgãos de Registro do Comércio a arquivar os atos constitutivos de empresas faturizadoras, independentemente de aprovação prévia do Banco Central do Brasil.

Nesse quadro de referências, tem-se que, inicialmente, com vistas a dissiparem qualquer associação que pudesse vir a ser feita entre a prática da faturização e, v.g., a agiotagem, as empresas de “factoring” encarregaram-se da assunção do risco de inadimplemento do título de crédito cedido, pelo que a natureza da cessão operada assumia caráter puramente “pro soluto”. O que, destarte, servia para distinguir essa figura da do desconto bancário, uma vez que se configurava como uma cessão de crédito sem direito de regresso contra o cedente. Essa natureza “pro soluto” da cessão, no entanto, não decorreu de imposição legislativa, nem tampouco da transplantação, para a prática do nosso direito vivente, de modelo experimentado em outros mercados/países; mas guardou correlação com o momento histórico em que surgiu o instituto no Brasil e o anseio dos empresários do setor por desatrelarem sua imagem da agiotagem, sobretudo.

Com o passar dos anos e a sedimentação do papel das empresas de fomento mercantil no cenário nacional, vozes abalizadas soergueram-se para sustentar que o contrato de fomento mercantil, por ser atípico e misto, é passível de franquear ao cedente (faturizado) assumir outras garantias além das relativas à existência e legitimidade do crédito cedido. Não havendo, portanto, óbice legal à inserção de cláusula de regresso ou de recompra (natureza “pro solvendo”) no bojo do contrato, visto não se encontrar o “factoring” especificamente regularizado pelo Direito pátrio.

Feitas essas considerações, é de rigor explicitar que, por envolver a operação de “factoring” uma cessão de crédito em que o título circula por meio de endosso, na medida em que detentora de natureza contratual e não cambial, torna-se imperioso perquirir sobre os efeitos da cessão de crédito relativamente à responsabilidade assumida pelo cedente (faturizado), a qual deve ser vislumbrada sob dois aspectos: “i) responsabilidade [obrigatória] do cedente pelo crédito cedido e, ii) responsabilidade [opcional] pela solvência do devedor” (DONINI, Antônio Carlos. “Factoring”: de acordo com o novo Código Civil (Lei nº 10.406, de 10.01.2002). Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 102). E continua o mesmo autor:

“Na prática de ‘factoring’ é costume chamar de: i) ‘direito de regresso em caso de vício’ do título, quando tratar-se de responsabilidade do cedente pelo crédito cedido e ii) ‘direito de regresso independente de vício ou pagamento do sacado-devedor’, quando a responsabilidade do cedente envolver a garantia pela solvência do devedor” (Idem, ibidem).

Nesse sentido, impende ressaltar que as disposições normativas dos artigos 295 a 297 do Código Civil de 2002 (correspondentes aos artigos 1.073 a 1.075 do Código Civil de 1916), expressamente imputam a responsabilidade ao cedente pela existência do título cedido e por quaisquer vícios que o inquinem de invalidade, desde que por culpa do faturizado.

Relativamente à responsabilidade do cedente (faturizado) pelo inadimplemento/insolvência do devedor (sacado), muito embora seja mais comum o caráter “pro soluto” – isto é, ausência de responsabilidade subsidiária do faturizado pela solvência ou adimplemento do sacado-devedor – nada impede que o contrato de “factoring” seja balizado por cláusulas próprias, uma das quais dispondo sobre a recompra do título cambiariforme pelo cedente (empresa faturizada). A entabulação, no contrato de faturização, quanto ao caráter “pro soluto” ou “pro solvendo” é perfeitamente legítima, não encontrando vedação.

Nas palavras de JORGE LUIS COSTA BEBER:

“(…) não soa desarrazoado afirmar que em se tratando de contrato de fomento mercantil inexiste qualquer ilegalidade na estipulação por parte do faturizado da sua responsabilidade subsidiária na hipótese de inadimplemento por parte dos sacados dos títulos cedidos para empresa de ‘factoring’. Tal estipulação não é vedada por lei, não atenta contra a ordem pública e atende aos interesses do próprio faturizado, que negociará com o factor um fator de compra (deságio) que melhor atenda aos seus interesses” (BEBER, Jorge Luis Costa. Contrato de factoring: legalidade da cláusula de regresso. “Revista de Fomento Mercantil”, março 2005).

A jurisprudência pátria, paulatinamente, vem adquirindo novos contornos para admitir a cláusula de regresso ou recompra (“pro solvendo”) no contrato de fomento mercantil também na hipótese de inadimplemento do devedor (sacado) e não só na de vício do título de crédito:

“Ainda que a duplicata emitida pela primeira ré tenha circulado, por meio de endosso aposto na cártula, por força de contrato de faturização celebrado entre aquela e a segunda ré, em vista da falta de cientificação da autora a respeito da cessão do crédito, não há óbice à pretensão desta última em ver cancelado o protesto, com base na assertiva de que houve a extinção cambial, por meio de compensação de créditos junto à sacada. Como regra geral, o cedente dos créditos não pode ser responsabilizado pela solvabilidade do título de crédito negociado, pois é da natureza do ‘factoring’ a assunção, pelo faturizador, dos riscos pelo inadimplemento dos créditos transferidos. Exceções são os casos em que o faturizado assume contratualmente a obrigação de pagamento do título ou age com má-fé, transferindo a cártula ao faturizador, cujo pagamento tem ciência que não será efetuado pelo sacado. Demonstrado, nos autos, que a obrigação representada pela duplicata levada a protesto foi extinta pela compensação havida entre a autora e a primeira ré, não se justifica a mantença do protesto” (TJMG – Ap. Cível n.º 1.0024.04.502015-3/001 – Rel Des. Eduardo Marine da Cunha. DJ 05/06/2008).

“Se a empresa cedente de títulos, em decorrência de contrato de ‘factoring’, deu causa a que os mesmos não pudessem ser recebidos fica responsável pelo pagamento” (STJ, 3ª T., REsp 330014/SP, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, ac. 28.05.2002, DJU 26.08.2002, p. 212. No mesmo sentido: TJDF, Ap. Cível 4179296/DF, Rel. Des. Haydevalda Sampaio, DJU 25.06.1997, p. 13.895; TJRGS, Ap. Cível 195197090, Rel. Des. Rubem Duarte; TJRGS, 16ª C.C., Ap. Cível 70000934810, Rel. Des. Ana Beatriz Iser; TJRGS, 10ª C.C., Ap. Cível 598157766, Rel. Des. Paulo Antônio Kretzmann, ac. 20.08.1998; TJRGS, 10ª C.C., Ap. Cível 70010450641, Rel. Des. Luis Ary Vessini de Lima).

“‘Factoring’. Recompra de títulos. Admissibilidade. Inexistindo norma legal impeditiva, não descaracteriza a operação de ‘factoring’ a recompra de títulos quando avençada contratualmente, mantida a natureza da operação, torna-se inviável a revisão para expurgar juros excessivos, eis que inexistentes. Apelo improvido” (TJRGS, 12ª C.C., Ap. Cível 197200199, Rel. Des. Ulderico Ceccato. No mesmo sentido: STJ, REsp 98962/RS, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito; TJRGS, 5ª C.C., Ap. Cível 70010274009, Rel. Des. Léo Lima; TJDF, 4ª T., Ap. Cível 4179296, Rel. Des. Haydevalda Sampaio, ac. 31.03.1997, DJU 25.06.1997, p. 13.895; STJ, REsp 43914/RS, Rel. Min. Eduardo Ribeiro).

Em suma e à guisa de conclusão, dessume-se que sob a égide do Código Civil de 2002 e à luz dos princípios da probidade, boa-fé e função social do contrato que balizam e informam o novel diploma, não há motivo plausível para repugnar a cláusula de recompra ou a natureza “pro solvendo” – responsabilidade subsidiária do faturizado – nos contratos de fomento mercantil.

Fonte: HTJ advogados

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