Dra. Lívia Piana de Faria comenta sobre a descriminalização da ortotanásia

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A descriminalização da ortotanásia: o direito de morrer naturalmente.

O direito à vida e a dignidade da pessoa humana são valores supremos. Ao confrontá-los, qual deve prevalecer? No Brasil, a matéria alcançou amplitude no último dia 02 de dezembro de 2009, com a aprovação pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Projeto de Lei (PLS 524/09), de autoria do Senador Gerson Camata, que retira a ortotanásia do rol das ilicitudes penais. O objetivo é acrescentar dois novos parágrafos ao artigo 121 do Código Penal, com a seguinte redação:

“Exclusão de ilicitude

§ 6º – Não constitui crime deixar de manter a vida de alguém por meio artificial, se previamente atestada por dois médicos a morte como iminente e inevitável, e desde que haja consentimento do paciente, ou em sua impossibilidade, de cônjuge, companheiro, ascendente, descendente ou irmão.

§ 7º – A exclusão de ilicitude a que se refere o parágrafo anterior faz referência à renúncia ao excesso terapêutico, e não se aplica se houver omissão de meios terapêuticos ordinários ou dos cuidados normais devidos a um doente, com o fim de causar-lhe a morte.”

De acordo com o relatório do projeto, “não constitui crime deixar de manter a vida de alguém por meio artificial, se previamente atestada por dois médicos a morte como iminente e inevitável, e desde que haja consentimento do paciente, ou em sua impossibilidade, de cônjuge, companheiro, ascendente, descendente ou irmão”.

Em face dessa situação, defende-se a descriminalização da prática da ortotanásia, que consiste na interrupção do emprego dos recursos da medicina com o objetivo de deixar o enfermo morrer naturalmente, em exercício ao direito do indivíduo de humanizar seu processo de morte, evitando prolongamentos desnecessários em afronta ao princípio da dignidade do paciente.

O novo texto legal, que seguiu para aprovação na Câmara dos Deputados após realização de Audiência Pública, dá ao cidadão enfermo grave, já em fase terminal, o direito de morrer com dignidade, sem a obrigatoriedade de uso de meios desproporcionais em respeito a sua vontade, dando-lhe tão somente conforto físico e psíquico.

A proposta se coaduna com a Resolução n.º 1.805 do Conselho Federal de Medicina, que, desde 2006, pretende, sob o prisma ético, disciplinar o uso de tratamentos excessivos em pacientes na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis. Nos termos da referida resolução, é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do enfermo, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal.

A Resolução procurou demonstrar que não há obrigação do médico em prolongar a vida do paciente a qualquer custo e que cabe a este ou a seu representante legal decidir a respeito da continuação do tratamento, contando com todas as informações disponíveis sobre as alternativas terapêuticas. Consegue-se preservar a autonomia individual e a dignidade do paciente, que receberá os cuidados necessários ao alívio de seu sofrimento. É dada, inclusive, a opção de requisitar alta do hospital, podendo morrer de maneira mais humana, ao lado de sua família.

Todavia, cumpre esclarecer que nos autos da Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público Federal (processo nº 2007.34.00.014809-3), o juiz titular da 14ª Vara Federal, Dr. Roberto Luiz Luchi Demo, concedeu liminar suspendendo os efeitos da referida resolução, sob o fundamento de que a sua vigência implicava na legalização indevida do crime de homicídio, decisão equivocada, com a devida vênia.

Seguindo a mesma linha da Resolução do CFM, o projeto de lei estabelece que havendo manifestação favorável do doente em fase terminal, de seus familiares ou de seu representante legal, é permitida a limitação ou a suspensão de procedimentos desproporcionais ou extraordinários destinados a prolongar artificialmente sua vida.

Outra circunstância prevista é que, impossibilitada a manifestação de vontade do paciente e tendo este anteriormente, quando lúcido, se pronunciado contrariamente à suspensão desse tipo de procedimento, será respeitada a vontade anteriormente manifestada. E mais: mesmo no caso de cancelamento desses procedimentos, serão mantidos os cuidados básicos necessários à manutenção da vida e da dignidade do paciente.

A descontinuidade dessas condutas, com o objetivo de evitar que o sofrimento do paciente nessa situação e a angústia dos seus familiares e amigos se estenda por tempo indefinido, não deve ser vislumbrada como um ilícito penal. O processo de ortotanásia significa a morte no momento certo, nem apressada, como no caso da eutanásia, nem prolongada, como no caso da distanásia.

No que diz respeito à constitucionalidade da matéria, cumpre ressaltar que a Constituição Federal garante aos brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, consoante previsto no caput do seu art. 5º.

Todavia, para melhor compreender o tema em debate, faz-se necessário ponderar a proteção à vida com o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no art. 1º, III da Constituição Federal. E, exatamente, com fulcro na dignidade humana, parece-nos ser possível concluir que a Constituição dá guarida à disposição de vontade do paciente (ou de seus representantes legais e parentes) que, estando em situação de vida terminal, opta pela cessação de intervenção que consegue manter-lhe a vida, mas em condições que lhe afeta a dignidade. Ademais, é inegável que a ortotanásia ganhou espaço nos últimos tempos em face dos avanços nos tratamentos da medicina, já que nos dias de hoje é possível manter a vida orgânica por tempo indeterminado, ainda que não haja possibilidade de recuperação das funções cerebrais.

Na realidade, o novo projeto de lei possibilita que o paciente irremediavelmente enfermo e seus familiares, juntamente com o médico, que nesse novo contexto agirá de forma mais tranqüila e livre do receio de se ver envolvido em uma ação penal, busquem alternativas para adoção de medidas que tragam conforto e dignidade em seus últimos instantes.

Vale dizer: é garantia constitucional do cidadão enfermo, já em fase terminal, além de uma vida digna, o acesso a saúde e a liberdade em optar por pela aplicação de métodos evasivos, que apenas prolongarão o seu sofrimento, sem efeito algum para a irreversibilidade do seu estado clínico.

Considerando a complexidade do tema e a fim de evitar toda a discussão no momento da sua decisão e aplicação, é possível que o cidadão, de forma segura, antecipe a sua vontade em um testamento vital – escritura pública lavrada perante o tabelião, na qual o cidadão define como deseja ser tratado em caso de perda da consciência (estado de incapacidade) –, nomeando procurador para fazer cumprir a sua vontade.

Enfim, o direito potestativo de viver a vida e de morrer a própria morte deve ser observado à luz da vontade do paciente (ou de seus familiares) acometido por doença incurável já em fase terminal, pelo que correta foi a sua descriminalização.

Fonte: HTJ advogados

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