Dra. Livia Piana de Faria comenta sobre o dever de guarda dos documentos pelo prazo pescricional

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Breves comentários sobre o dever de guarda dos documentos pelo prazo prescricional dos atos neles consignados

Lívia Gonçalves Pinho Piana de Faria

Nos dias de hoje, a análise de documentos diversos, em especial os contábeis (Livras Diário, Razão Contábil, entre outros), configuram peça essencial para a solução dos conflitos envolvendo empresas.

Movidos pela obrigatoriedade de guarda dos livros para solução de questões fiscais (prescrição tributária – art. 173 do CTN), as pessoas jurídicas comumente conservam os documentos tão-somente pelo prazo de cinco anos. Todavia, olvidam que toda a documentação deve ser mantida pela empresa pelo prazo prescricional para o ajuizamento da ação específica (pessoal, real, tributária).

É conveniente ressaltar que o Código Civil de 1916 era omisso quanto à obrigatoriedade de permanecer com os livros comerciais até a efetiva expiração de eventual prazo prescricional. Ao revés, tal disposição era trazida pelo antigo Código Comercial, o qual dispunha que:

Art. 10 – Todos os comerciantes são obrigados:

(…)

3º. – a conservar em boa guarda toda a escrituração, correspondência e mais papéis pertencentes ao giro do seu comércio, enquanto não prescreverem as ações que lhes possam ser relativas.

O art. 4º. do Decreto-Lei n. 486/69, que legisla sobre a escrituração dos livros contábeis, também tratou sobre o dever de guarda dos documentos, a saber: “O comerciante é ainda obrigado a conservar em ordem, enquanto não prescritas, eventuais ações que lhe sejam pertinentes, a escrituração, correspondência e demais papéis relativos à atividade, ou que se refiram a atos ou operações que modifiquem ou possa modificar a sua alteração contratual.”

Dessa forma, na hipótese de ações indenizatória, tem a parte litigante a obrigação legal de manter os livros contábeis pelo prazo prescricional respectivo.

Nessa mesma linha é a doutrina de Modesto Carvalhosa:

“No âmbito do Código Comercial de 1850, a manutenção e a conservação dos livros comerciais e dos demais papéis concernentes à atividade mercantil deviam dar-se pelo prazo mínimo de vinte anos, após o que todas as ações relativas às obrigações comerciais contraídas por escritura pública ou particular prescreviam, conforme o art. 442 do vetusto diploma.” (Comentários ao Código Civil: parte especial: do direito da empresa. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 830.)

Vale atentar que as lições doutrinárias acima vêm ao encontro do disposto no Código Civil de 2002, que foi expresso ao fixar, para os empresários, o dever de conservação dos documentos concernentes à atividade empresarial enquanto não findos os prazos prescricionais ou decadenciais a eles concernentes, nos seguintes termos:

“Art. 1.194. O empresário e a sociedade empresária são obrigados a conservar em boa guarda toda a escrituração, correspondência e mais papéis concernentes à sua atividade, enquanto não ocorrer prescrição ou decadência no tocante aos atos neles consignados.”

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e Tribunais Estaduais já se manifestaram pela inaplicabilidade do prazo de guarda de 5 anos previsto na legislação tributária aos casos em que está-se diante de ação pessoal, hipótese em que a parte deverá guardar os livros pelo lapso prescricional da ação de responsabilidade civil:

“(…) 2. Acórdão a quo segundo o qual o dever de sociedade de economia mista é manter a guarda de documentos e contratos pelo prazo de vinte anos, que é o lapso prescricional de suas obrigações (Súmula nº 39 do STJ), inclusive a comprovação de entrega ao consumidor de cópia de contrato de financiamento de rede de eletrificação com ele firmado.

3. É remansosa a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que o prazo prescricional da ação pessoal contra sociedade de economia mista é de 20 (vinte) anos, nos termos do art. 177, do Código Civil. (…)

5. Agravo regimental não provido.” (STJ, AgRg no Ag 479.216/RS, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 06/03/2003, DJ 31/03/2003 p. 178)

“DECISÃO DO JUÍZO A QUO QUE DETERMINOU A APRESENTAÇÃO DOS LIVROS CONTÁBEIS DO AGRAVANTE, ELABORADOS NO PERÍODO COMPREENDIDO ENTRE OS ANOS DE 1985 E 1996.

Aduz a agravante que não possui os referidos livros, eis que escoado o prazo legal para sua manutenção, que seria de cinco anos, na forma como disposto no artigo 173 do CTN. Assevera, ainda, que compete à autora a prova dos fatos constitutivos de seu direito, na forma como disposto no artigo 333, inciso I do Código de Processo Civil. Cotejando o artigo 10 do antigo Código Comercial, com o artigo 177 do CC/16 e o artigo 2.028 do CC/02, deduz-se que o agravante tinha a obrigação legal de manter os referidos livros pelo prazo previsto na legislação da época. A alegação do agravante de que o prazo prescricional seria de apenas cinco anos, na forma do artigo 173 do CTN, não merece prosperar, eis que a lide refere-se não a crédito tributário, mas sim a direito pessoal do autor.No que se refere à alegação de que competiria à parte autora fazer prova dos fatos constitutivos de seu direito, verifica-se também que a razão não assiste ao agravante. Isto porque, a determinação judicial, cuja cópia encontra-se às fls. 470 dos presentes autos, não tem como fundamento o artigo 333, inciso I, do CPC, mas sim o disposto no artigo 382 do mesmo diploma legal. Tal artigo dispõe que o “juiz pode, de ofício, ordenar à parte a exibição parcial dos livros e documentos, extraindo-se deles a suma que interessar ao litígio, bem como reproduções autenticadas”.Portanto, em razão dos argumentos acima explicitados, dá-se parcial provimento ao presente recurso apenas para excluir a obrigatoriedade de apresentação do livro contábil referente ao ano de 1985, nos exatos termos da fundamentação.” (TJRJ, AI n. 2009.002.22779, 1ª. Câmara Cível, Des. Relatora Maria Augusta Vaz, julgado em 08/09/2009).

Nesse contexto, a parte não pode se escusar de, nos termos da lei, exibir os documentos que comprovem a realização de atos e negócios jurídicos, enquanto não prescritas as pretensões deles decorrentes, sob pena de incidir na sanção do art. 359 do CPC, que assim dispõe: “Ao decidir o pedido, o juiz admitirá como verdadeiros os fatos que, por meio do documento ou da coisa, a parte pretendia provar”. Portanto, a impossibilidade de exame da escrituração de uma parte, ocasionada por sua culpa exclusiva, não pode beneficiá-la, devendo ser observada a regra inserta no aludido artigo.

É nesse sentido, a jurisprudência pacífica do STJ, como se pode ver dos seguintes acórdãos:

‘AGRAVO REGIMENTAL. […].

1. Tratando-se de documento comum às partes, não se admite a recusa de exibi-lo, notadamente quando a instituição recorrente tem a obrigação de mantê-lo enquanto não prescrita eventual ação sobre ele.

2. […]. Agravo regimental improvido. (AgRg no Ag 554823-RS, rel. Ministro Barros Monteiro, Quarta Turma, j. em 1º.9.2005, DJ 17.10.2005)

1. A partir da interpretação do art. 358, II, do CPC, não se admite a recusa da CEEE quanto à exibição de documento comum às partes litigantes antes de consumado o prazo prescricional de vinte anos, incidente na hipótese, por se tratar de sociedade de economia mista, concessionária de serviço público. Precedentes.

2. Agravo regimental improvido. (AgRg no Ag 538.002-RS, rel. Ministro Paulo Furtado, Terceira Turma, j. em 24.3.2009, DJe 14.4.2009)

Dada a importância do tema, em recente acórdão publicado em 09/11/2010, o Ministro João Otávio de Noronha analisou o dever de guarda de documentos sob o enfoque das pessoas físicas e pessoas jurídicas não empresárias: “Parece-me natural que, se do empresário e da sociedade empresária somente é exigido que conservem os documentos de sua atividade ‘enquanto não ocorrer prescrição ou decadência no tocante aos atos neles consignados’, maior rigor não pode ser imposto às pessoas físicas não empresárias. Isso porque a atividade empresarial carreia para os empresários e para as sociedades empresárias uma série de normas mais rígidas do que aquelas aplicadas aos indivíduos (e também a algumas pessoas jurídicas não empresárias), pois visam à proteção daqueles que com elas se relacionam (clientes, fornecedores, empregados, fisco etc.). Em função disso, tenho para mim que tanto o revogado art. 10, n. 3, do CCom quanto o art. 1.194 do CCiv2002 exprimem regra que não se restringe às pessoas a que se referem (comerciantes, empresários e sociedades empresárias), mas princípio aplicável a todos aqueles que se encontrem na mesma situação (pessoas físicas, sociedades não empresárias, associações, fundações etc.).”

Ao final, conclui que “impõe-se, destarte, a aplicação analógica (Lei de Introdução ao Código Civil, art. 4º) dos citados dispositivos às pessoas físicas (e também às pessoas jurídicas não empresárias), de modo que elas, de igual modo, obrigam-se a conservar os documentos representativos de negócios e atos jurídicos enquanto não prescritas as pretensões ou caducos os direitos deles decorrentes.” (STJ, Recurso Especial n. 1046497/RJ, 4ª. Turma, j. em 24/08/2010, in DJe de 09/11/2010).

Conclui-se que sobrevindo a prescrição ou a decadência, não mais subsiste o dever de guarda de documentos tanto para as pessoas jurídica (empresárias ou não), como para as pessoas físicas. De fato, se o dever de conservação de documentos se sujeita ao limite temporal correspondente aos prazos prescricionais ou decadenciais, findo estes, extingue-se aquele, de modo que não pode ser exigida da parte sua exibição. Entender o contrário seria impor aos litigantes obrigação juridicamente impossível, sendo legítima a exigência da exibição enquanto não transcorrido o prazo prescricional ou decadencial.

Fonte: HTJ advogados

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