Dra. Ananda Portes discorre sobre a revisão judicial das decisões do CADE

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A revisão judicial das decisões do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE)

A tutela da concorrência no Brasil se dá atualmente em duas órbitas distintas. Na esfera administrativa, por meio da atuação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) e da Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE), e no âmbito judicial. Neste, a defesa da concorrência pode se dar de três formas diferentes: Primeiramente, por meio da execução das decisões do CADE que imponham obrigação de fazer ou não fazer, ou que cominem multa, eis que o art. 93 da Lei 12.529/11 confere a tais decisões a força de título executivo extrajudicial. Em segundo lugar, através do ajuizamento de ação de reparação dos prejuízos causados por uma infração à ordem econômica, prevista no art. 47 da Lei de Defesa da Concorrência (trata-se do denominado “private enforcement”). Por fim, a tutela da concorrência também é realizada por meio da revisão judicial das decisões proferidas pelo CADE, sendo esta a matéria que será abordada pelo presente artigo.

O fundamento último da possibilidade de revisão judicial das decisões do CADE remonta à teoria da separação dos poderes, preconizada por Montesquieu em “O Espírito das Leis”. Ao analisar os diversos ordenamentos jurídicos estatais que adotam esta teoria é possível visualizar dois sistemas diversos de sua interpretação: o Sistema Judicialista e o Sistema Administrativo. Este, adotado pela França, dita a completa separação dos poderes. Aquele, adotado pelos EUA, Inglaterra, e também pelo Brasil, desde a República, permite que a função Judicial atue sobre a Administrativa em determinadas hipótese previstas em Lei.

Com efeito, no Brasil, o controle exercido pelo Judiciário sobre as decisões do CADE está alicerçado no princípio da unicidade da jurisdição, também denominado princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, garantia fundamental insculpida no inciso XXXV do art. 5° da Constituição da República. Assim, na medida em que o Brasil adota o Sistema Judicialista da divisão de poderes (ou funções), é sempre dado ao Judiciário pronunciar a palavra final, sendo-lhe conferida competência para rever as decisões administrativas nas hipóteses previstas em Lei.

Ainda que seja inequívoca a possibilidade de controle judicial das decisões do CADE, é certo que os limites dessa revisão constitui questão assaz polêmica. Poderia o Judiciário rever o mérito das decisões do CADE ou sua atuação estaria restrita ao controle de legalidade, também denominado controle formal das decisões da autoridade administrativa?

Na primeira hipótese ter-se-ia a denominada “Jurisdição Plena”, na qual é dado ao Judiciário conhecer de todos os fatos e circunstâncias econômicas que embasaram a decisão. Na segunda, ter-se-ia a denominada “Jurisdição Contida”, hipótese em que é conferido ao Magistrado competência apenas para conhecer da adequação de um ato a normas processuais ou formais, podendo verificar, por exemplo, se os prazos foram cumpridos, se o despacho foi motivado, se houve contraditório, se houve ampla defesa, etc.

A distinção entre jurisdição plena e contida, contudo, decorre da qualificação jurídica das decisões do CADE. Não há dúvidas de que se trata de atos administrativos, pois emanados por uma Entidade da Administração Pública Indireta – Autarquia Federal, no exercício de poderes conferidos pela Lei. A polêmica reside em qualificá-los como atos administrativos vinculados ou discricionários.

Tal diferenciação é crucial, porquanto, a princípio, sob a ótica da tradicional classificação dos atos administrativos, os aspectos dos atos administrativos de caráter discricionário escapam ao controle judicial, limitando-se a competência do Poder Judiciário a avaliar a legalidade dos atos (controle formal) e se o ato observou os limites da discricionariedade (exame quanto à razoabilidade na avaliação dos critérios de conveniência e oportunidade). Ao passo que os aspectos vinculados do ato administrativo comportam revisão plena.

Amanda Flávio de Oliveira, em “O Direito da Concorrência e o Poder Judiciário”, considera serem as decisões do CADE atos administrativos vinculados, passíveis, portanto, de revisão plena.

Escorando-se na lição de Eduardo Enterría, e na linha da atual doutrina administrativista, a autora defende que a partir da evolução dos conceitos de discricionariedade e vinculação diversas situações consideradas anteriormente no âmbito dos atos discricionários passaram a ser consideradas vinculadas – passíveis, portanto, de revisão judicial, sendo um exemplo disso os conceitos jurídicos indeterminados, amplamente utilizados pela Lei 12.529/11.

De acordo com essa corrente doutrinária, os conceitos jurídicos são indeterminados apenas em abstrato, porquanto quando se está diante do caso concreto, o conceito realiza-se ou não, havendo a denominada “unidade da solução justa”.

Assim, em que pese o emprego, pela Lei de Defesa da Concorrência, de expressões amplas, fluídas e abstratas, tais como “prejudicar a livre concorrência”, “exercício abusivo de posição dominante”, “aumento arbitrário de lucro” (art. 36), ou “melhorar a qualidade dos bens”, “propiciar o desenvolvimento tecnológico” e “repassar ao consumidor parte relevante dos benefícios” (art. 88, §5°), quando se está diante do caso real tais previsões se concretizam ou não. Isto é, diante do caso concreto, verifica-se ou não o desenvolvimento tecnológico, o repasse ao consumidor de parte relevante dos benefícios, o aumento arbitrário de lucros, etc.

Além disso, especialmente no campo do Direito Econômico, conceitos juridicamente indeterminados podem ser economicamente determináveis, sendo possível aferir numericamente, por exemplo, o ganho de eficiência provocado por determinada operação de concentração, ou o prejuízo causado por um cartel.

Ainda de acordo com os defensores dessa corrente, o caráter altamente técnico das decisões do CADE não as tornaria discricionárias, pois dentre as decisões possíveis, o administrador deverá sempre adotar a tecnicamente melhor, economicamente mais eficiente.

Sustentam, ainda, que mesmo os aspectos discricionários que possam constar da decisão do CADE poderão ser controlados judicialmente pelo critério da razoabilidade e proporcionalidade. Nesse sentido, todas as decisões do CADE estariam sujeitas ao controle amplo, não apenas formal, mas também de mérito, do Judiciário.

Filia-se a essa corrente Paula Forgioni, para quem, em um Estado Democrático de Direito, não se admite poder sem controle. Segundo a autora, a revisão judicial é a segurança do cidadão contra eventuais abusos ou enganos cometidos pelo Executivo.

Também o Juiz Federal Walter Nunes da Silva Júnior considera que as decisões do CADE constituem ato administrativo vinculado, sujeitas, portanto, ao exercício do controle judicial amplo. Sugere o autor que o juiz encare “a decisão do CADE assim como ele examina um laudo lavrado por perito, cabendo-lhe louvar a sua conclusão a respeito da questão, se for necessário, com base em dados técnicos, de preferência com o auxílio de expertos”.

Divergindo dessa posição, Isabel Vaz sustenta que, salvo em caso de ofensa a princípios constitucionais, o mais adequado é que se adote o modelo de jurisdição contida, com o controle apenas formal das decisões do CADE.

De acordo com a autora, as autoridades antitruste, no exercício de sua função judicante, estão sujeitas a diversas limitações, tais como a necessidade de motivar o ato decisório, a vinculação aos requisitos legais, dentre outras. Contudo, “a mais avassaladora entre todas as limitações é aquela decorrente da necessidade de se harmonizar as decisões antitruste com as políticas econômicas estabelecidas em um setor”.

Dessa limitação, isto é, da importância de se conformar as decisões proferidas na seara do Direito Concorrencial com as políticas econômicas adotadas pelo Estado, decorre a necessidade de se adotar o modelo de jurisdição contida. Dito de outro modo: tendo em vista que o CADE, ao proferir sua decisão, já buscou adequá-la às políticas econômicas implementadas pelo Estado, convém circunscrever a ação do Judiciário ao controle da legalidade, preservando a integridade do aspecto material da decisão administrativa já proferida.

Ao lado de Isabel Vaz há também quem defenda que as decisões do CADE não poderiam ser objeto de revisão judicial (salvo sob o aspecto formal), tendo em vista o caráter altamente técnico da decisão.

Nesse sentido, por exemplo, a lição de Edilson Nobre, para quem nas situações em que a decisão do CADE apresente conteúdo eminentemente técnico não se mostra adequada a intervenção ilimitada do juiz.

Essa corrente, que defende a impossibilidade de revisão do mérito da decisão do CADE, aponta também a economia processual e a maior efetividade da proteção da concorrência que decorreriam dessa vedação, tendo em vista que não se decidiria duas vezes a mesma questão, e que se privilegiaria a solução técnica, dada por espertos no assunto.

Outro argumento frequentemente suscitado por esta corrente é o despreparo dos magistrados quanto ao Direito Concorrencial, disciplina relativamente recente, à qual a maioria dos magistrados sequer teve acesso nos bancos da faculdade. Nesse sentido, pesquisas, como a realizada por Gisela Ferrerira Mationi, revelam a falta de consistência das decisões judiciais proferidas nessa seara, que fazem pouca – ou nenhuma – referência aos dispositivos legais pertinentes (notadamente à Lei 8884/94, hoje substituída pela Lei 12.529/11), e que praticamente nunca lançam mão da doutrina especializada.

Em resumo, a extensão da revisão judicial das decisões proferidas pelo CADE decorre da qualificação destas como sendo atos administrativos vinculados ou discricionários. Se discricionários, é dado ao judiciário exercer apenas o controle formal sobre as decisões proferidas pela autoridade antitruste, além do controle sob a perspectiva da razoabilidade e proporcionalidade dos juízos de conveniência e oportunidade da Administração Pública. Se vinculados, também o mérito da decisão administrativa poderia ser objeto de análise pelo órgão judicial.

Em ambos os casos, contudo, em um contexto de inafastabilidade da jurisdição, não há dúvidas de que a atuação do Judiciário é imprescindível à consolidação da cultura da concorrência, seja no julgamento das ações indenizatórias, seja na revisão das decisões proferidas pelo CADE. Mas para isso é fundamental que os magistrados, ao apreciarem controvérsias nesta seara, considerem as implicações econômicas de sua decisão e recorram, como sugere Amanda Oliveira, à teoria econômica e à Análise Econômica do Direito.

Referências Bibliográficas:

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade administrativa na constituição de 1988. São Paulo: Atlas, 1991.

FORGIONI, Paula A. Os fundamentos do antitruste. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

MATIONI, Gisela Ferreira. As ações civis para cessação e reparação de danos causados por condutas anticorrenciais no Brasil, disponível em: , acesso em 06/01/14.

NOBRE, Edilson. O cade e a repressão ao abuso do poder econômico. Revista CEJ/RN, Natal, v. 8, p. 36, dez. 2005.

OLIVEIRA, Amanda Flávio de. Direito da concorrência e o poder judiciário. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Revisão Judicial das Decisões do CADE, p. 12. Disponível em: Acesso em 11/01/14.

VAZ, Isabel. O Poder Judiciário e a Aplicação da Lei Antitruste. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). Estudos em homenagem ao ministro Adhemar Ferreira Maciel. São Paulo: Saraiva, 2001 p.

Fonte: HTJ advogados

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