Dra. Ester Norato comenta sobre o princípio da boa-fé objetiva na jurisprudência brasileira

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O princípio da boa-fé objetiva na jurisprudência brasileira

A teoria contemporânea dos contratos mitiga o secular princípio da autonomia da vontade com as determinações advindas da função social do contrato e do princípio da boa-fé, hoje amplamente consagrados no direito privado e expressamente reconhecidos pelos arts. 421 e 422 do Código Civil, verbis: “Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão nos limites da função social do contrato. Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como na sua execução, os princípios da probidade da boa-fé.”

Os tribunais pátrios têm se pronunciado em alinhamento à teoria contemporânea dos contratos, notadamente no que tange ao princípio da boa-fé objetiva e seus consectários, como, exemplificadamente, a lealdade, a probidade, a cooperação, a criação de legítima expectativa, dentre outros.

Nesse cenário, vale referência o seguinte julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE ALIMENTOS. AUSÊNCIA DE RELAÇÃO OBRIGACIONAL PELO COMPORTAMENTO CONTINUADO NO TEMPO. CRIAÇÃO DE DIREITO SUBJETIVO QUE CONTRARIA FRONTALMENTE A REGRA DA BOA-FÉ OBJETIVA. SUPRESSIO. EXTINÇÃO MATERIAL DO VÍNCULO DE MÚTUA ASSISTÊNCIA. Os atos e negócios jurídicos devem ser efetivados e interpretados conforme a boa-fé objetiva, e também encontram limitação nela, se a contrariarem. Inteligência dos artigos 113, 187 e 422 do CCB. Em atenção à boa-fé objetiva, o credor de alimentos que não recebeu nada do devedor por mais de oito anos permitiu com sua conduta a criação de uma legítima expectativa no devedor e na efetividade social de que não haveria mais pagamento e cobrança. A inércia do credor em exercer seu direito subjetivo de crédito por tão longo tempo, e a conseqüente expectativa que esse comportamento gera no devedor, em interpretação conforme a boa-fé objetiva, leva ao desaparecimento do direito, com base no instituto da supressio. Precedentes doutrinários e jurisprudenciais. No caso, não restou comprovado que a ex-companheira tenha recebido alimentos dirigidos diretamente a ela por parte do apelado a partir da separação. Também não há qualquer evidência de que a apelante não possa prover o próprio sustento. Sendo assim, é descabida a pretensão da apelante em vir, agora, pedir alimentos do ex-companheiro. NEGARAM PROVIMENTO.” (TJRS; Apelação Cível Nº 70026907352, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 04/12/2008)

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça proferiu significativa decisão em relação ao princípio da boa-fé objetiva, abordando-o na perspectiva da obrigação do credor de adotar conduta mitigadora dos danos a ele impingidos pelo devedor, não permanecendo deliberadamente inerte para, no futuro, pleitear elevada indenização. Veja-se:

“DIREITO CIVIL. CONTRATOS. BOA-FÉ OBJETIVA. STANDARD ÉTICO-JURÍDICO. OBSERVÂNCIA PELAS PARTES CONTRATANTES. DEVERES ANEXOS. DUTY TO MITIGATE THE LOSS. DEVER DE MITIGAR O PRÓPRIO PREJUÍZO. INÉRCIA DO CREDOR. AGRAVAMENTO DO DANO. INADIMPLEMENTO CONTRATUAL. RECURSO IMPROVIDO. 1. Boa-fé objetiva. Standard ético-jurídico. Observância pelos contratantes em todas as fases. Condutas pautadas pela probidade, cooperação e lealdade. 2. Relações obrigacionais. Atuação das partes. Preservação dos direitos dos contratantes na consecução dos fins. Impossibilidade de violação aos preceitos éticos insertos no ordenamento jurídico. 3. Preceito decorrente da boa-fé objetiva. Duty to mitigate the loss: o dever de mitigar o próprio prejuízo. Os contratantes devem tomar as medidas necessárias e possíveis para que o dano não seja agravado. A parte a que a perda aproveita não pode permanecer deliberadamente inerte diante do dano. Agravamento do prejuízo, em razão da inércia do credor. Infringência aos deveres de cooperação e lealdade. 4. Lição da doutrinadora Véra Maria Jacob de Fradera. Descuido com o dever de mitigar o prejuízo sofrido. O fato de ter deixado o devedor na posse do imóvel por quase 7 (sete) anos, sem que este cumprisse com o seu dever contratual (pagamento das prestações relativas ao contrato de compra e venda), evidencia a ausência de zelo com o patrimônio do credor, com o consequente agravamento significativo das perdas, uma vez que a realização mais célere dos atos de defesa possessória diminuiriam a extensão do dano. 5. Violação ao princípio da boa-fé objetiva. Caracterização de inadimplemento contratual a justificar a penalidade imposta pela Corte originária, (exclusão de um ano de ressarcimento). 6. Recurso improvido. (STJ; REsp 758518/PR, Rel. Ministro Vasco Della Giustina (Desembargador Convocado do TJRS), Terceira Turma, julgado em 17/06/2010, REPDJe 01/07/2010, DJe 28/06/2010)

No âmbito processual, em matéria de astreinte, o princípio da boa-fé objetiva tem sede também na perspectiva do dever de mitigação do prejuízo, conforme se colhe da lição de Fredie Didier:

“Remanesce a dúvida: toda essa construção teórica, criada para o universo do direito privado, pode ser aplicada por extensão ao direito processual? Certamente que sim. É lícito conceber a existência de um dever da parte de mitigar o próprio prejuízo, impedindo o crescimento exorbitante da multa, como corolário do princípio da boa-fé processual, cláusula geral prevista no art. 14, II, do CPC. Como já se disse, o princípio da boa-fé processual é decorrência da expansão do princípio da boa-fé inicialmente pensado no direito privado. Esse princípio implica a proibição do abuso do direito e a possibilidade de ocorrência da supressio, figura, aliás, que é corolário da vedação ao abuso. Se o fundamento do duty to mitigate the loss é o princípio da boa-fé, que rege o direito processual como decorrência do devido processo legal, pode-se perfeitamente admitir a sua existência, a partir de uma conduta processual abusiva, no direito processual brasileiro. Ao não exercer a pretensão pecuniária em lapso de tempo razoável, deixando que o valor da multa aumente consideravelmente, o autor comporta-se abusivamente, violando o princípio da boa-fé. Esse ilícito processual implica a perda do direito ao valor da multa (supressio), respectivamente ao período de tempo considerado pelo órgão jurisdicional como determinante para a configuração do abuso de direito. Trata-se, pois, de mais um ilícito processual caducificante”. (DIDIER JR., Fredie. Multa corercitiva, boa-fé processual e supressio : aplicação do duty to mitigate the loss no processo civil. in: Revista de processo. a. 34, 1. 171, maio, 2009, pág. 48)

Nesse sentido, decidiu recentemente o Superior Tribunal de Justiça em julgado assim ementado:

PROCESSO CIVIL. ASTREINTE. REDUÇÃO. POSSIBILIDADE. DILIGÊNCIA DA PARTE. 1. A astreinte não deve ser reduzida se o único obstáculo ao cumprimento de determinação judicial foi o descaso do devedor. 2. Na hipótese em que o devedor tome medidas tendentes ao cumprimento da ordem, ainda que tenha obrado com culpa leve pelos atos de descumprimento, justifica-se a redução da multa, fixada em patamar exagerado. 3. Recurso especial conhecido e provido. (STJ; REsp 1.151.505, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 07/10/2010, DJe 22/10/2010)

Fonte: HTJ advogados

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