Dra. Lívia Piana comenta sobre astreinte em cautelar e o processo principal

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Apontamentos sobre a exigibilidade da astreinte fixada em cautelar diante do resultado do processo principal.

Lívia Piana de Faria

Considerável obstáculo à liquidação e execução da multa cominatória fixada na hipótese do descumprimento da sentença ocorre quando o título impositivo da obrigação foi prolatado no bojo de cautelar preparatória – intentada para assegurar o processo principal, garantindo-lhe o resultado útil –, o que atrela a sua exigibilidade ao resultado final alcançado nesse feito. Para solucionar tal questão, é necessário retomar as particularidades do processo cautelar no qual foi fixada a astreinte cuja exigibilidade é discutida no presente artigo, em especial os aspectos de acessoriedade e dependência em relação ao processo principal.

As medidas cautelares são provisórias em dois sentidos, por seu caráter transitório e por sua natureza não satisfativa. Nesse contexto, a medida cautelar não tem um fim em si mesmo, servindo apenas para evitar possível dano decorrente da demora na prolação da sentença de mérito. Destarte, o processo cautelar não subsiste sem o processo principal ao qual se subordina, nos termos do art. 796 do CPC. Além de instrumental, a medida cautelar é, também, provisória, de modo que ela se destina a durar por determinado período, a teor do art. 807 do CPC.

Assim, o processo cautelar sempre se constitui em função de um processo principal, ao qual se vincula e do qual evidentemente depende, de modo que a sua existência e a sua razão de ser estão atreladas à existência ou probabilidade de existência de um processo principal, cuja eficácia se pretende garantir. De tal especificidade, resulta ser a tutela cautelar eminentemente preventiva, com a finalidade de resguardar outras espécies e jamais satisfativa do direito tutelado na lide principal.

Por sua vez, a multa cominatória, ou astreinte, é medida processual que tem por escopo dar maior efetividade ao provimento jurisdicional, sem qualquer finalidade sancionatória ou reparatória. A astreinte não é forma de executar a obrigação, mas é meio indireto de coagir o devedor a realizar a prestação inadimplida. Ao contrário das perdas e danos, que se destinam a compensar o prejuízo sofrido pelo credor em razão do descumprimento da obrigação, a multa que se utiliza na execução das obrigações de fazer e não fazer não tem nenhuma função compensatória.

Na mesma linha da tutela cautelar, que subsiste enquanto houver potencial provimento final a ser assegurado na pendência da ação principal, tem-se a multa cominatória, pois esta também exerce função instrumental e provisória, garantindo o cumprimento da obrigação enquanto subsistir a decisão que a impôs.

Em outras palavras, a incidência da multa cominatória só é legítima quando suscetível de tornar possível o cumprimento da prestação de fato pelo devedor. Isto porque, a astreinte fixada na hipótese de descumprimento do comando judicial, por sua natureza acessória e provisória, não é dotada de força e nem vida própria desvinculada do decisório que a impôs. Ou seja, a cobrança da multa cominatória fixada na hipótese de descumprimento de uma determinada decisão judicial só é possível diante da manutenção dos efeitos da decisão que ordenou a sua incidência.

Nesse cenário, surge o embate abordado no presente artigo em torno da exigibilidade da astreinte fixada em processo cautelar em que o requerente da medida restou sucumbente no feito principal.

E, para solucioná-lo, é necessário fixar importante premissa em torno dos efeitos da sentença que fixa a incidência de multa cominatória proferida no processo cautelar. Nessa hipótese, considerando que a sentença dessa natureza não resolve litígio em torno do direito material, não está revestida da imutabilidade da coisa julgada, pelo que a qualquer momento, mesmo quando esgotados todos os recursos cabíveis na esfera cautelar e já em curso o respectivo cumprimento de sentença, é possível questionar a exigibilidade da multa cominatória frente à ocorrência de fato superveniente. Quando se tornar definitiva a sucumbência do autor no processo principal, a sentença acautelatória e a astreinte ali fixada serão atingidas de imediato pelos efeitos dessa improcedência em qualquer estágio, exatamente porque não formam coisa julgada.

Sendo assim, eventual julgamento de questão concernente à legalidade e exigibilidade da multa cominatória fixada em processos cautelares não esbarra no óbice da coisa julgada. Essa é uma característica da astreinte enquanto fenômeno tipicamente processual e de sua fase executiva, especialmente quando fixada em processos cautelar que apresenta a mesma característica.

Essa orientação já foi acolhida no Superior Tribunal de Justiça em diversos julgados, sendo o mais recente o Recurso Especial n. 1.370.707/MT, no qual a Ministra Relatora teceu as seguintes considerações sobre o tema:

Dessa ordem de ideias resulta que a sentença proferida no processo cautelar, na medida em que não resolve a questão de fundo – haja vista que sua função é tutelar de forma temporária interesses sujeitos a risco de dano iminente -, não adquire autoridade de coisa julgada material, fenômeno que torna imutável e indiscutível, em qualquer processo, a norma jurídica individualizada. (REsp 1370707/MT, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 04/06/2013, DJe 17/06/2013)

Quando fixada em ação cautelar, a multa cominatória tem a função de assegurar o provimento jurisdicional definitivo na hipótese de procedência da ação principal. Em respeito ao seu caráter coercitivo para fins de cumprimento da obrigação, a incidência da multa cominatória só é legítima quando suscetível de tornar possível o cumprimento da prestação de fato pelo devedor. Comprovada, por sua vez, a impossibilidade do cumprimento da obrigação inserta no comando da sentença acautelatória, visto que a requerente da medida sagrou-se sucumbida na ação principal onde se discutia a questão de direito material controvertida, não mais terá lugar a exigibilidade da multa cominatória, justamente porque seu escopo real não é o de punir, mas o de obter a prestação específica.

Nesse contexto, a improcedência da demanda principal tem como consequência a cessação imediata dos efeitos da tutela cautelar anteriormente concedida, porquanto não subsiste mais o requisito da verossimilhança do direito invocado. Seria totalmente ilógico manter a eficácia da medida precedida de cognição sumária e acessória, cujo escopo é assegurar a eficácia do processo principal, quando o exame exauriente da relação material que ela visava proteger revelar a inexistência do direito firmado. A justificativa para esse posicionamento reside no fato de que o processo cautelar não sobrevive sozinho, não é independente, eis que a sua admissibilidade pressupõe sempre a do processo principal, cuja eficácia há de ser assegurada pelo primeiro.

Fixadas essas premissas, é possível concluir que a exigibilidade da multa cominatória imputada na ação cautelar preparatória depende de decisão final favorável no processo principal. Isto porque, sendo acessória da obrigação principal, com o objetivo de induzir ao cumprimento da obrigação e não o de ressarcir, a multa será exigível enquanto a obrigação principal foi reconhecidamente válida e eficaz.

Representaria verdadeira incongruência permitir que a parte requerida suporte o pagamento de multa cominatória à parte requerente da medida, cuja pretensão veiculada no processo principal foi julgada improcedente, quando o Judiciário reconhecer, em definitivo, a insubsistência do direito material que amparava a sentença cautelar que impôs a multa.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, em recente precedente idêntico ao tema abordada no presente artigo, reputou inexigível a multa cominatória decorrente de suposto descumprimento da decisão proferida no bojo da cautelar, na hipótese do processo principal ser julgado improcedente, senão veja-se:

Com efeito, não há razão para subsistência de uma medida (de natureza acessória e de eficácia temporária) deferida exclusivamente para assegurar um direito que se mostrava aparente, mas que, ao final, revelou-se inexistente, como no particular. O desacolhimento da pretensão formulada na ação principal esvazia o provimento acautelatório de um dos pressupostos sobre os quais se fundou: a verossimilhança do direito invocado. Daí a razão da existência das regras contidas nos arts. 807 – as medidas cautelares conservam a sua eficácia na pendência do processo principal – e 808 do CPC – cessa a eficácia da medida “se o juiz declarar extinto o processo principal, com ou sem julgamento do mérito”. Essa relação de dependência da cautelar frente ao processo principal, ademais, é veiculada expressamente pelo art. 796 do CPC: o procedimento cautelar pode ser instaurado antes ou no curso do processo principal e deste é sempre dependente. Em suma, o julgamento de improcedência do pedido deduzido na ação principal – que se reveste dos atributos de definitividade e satisfatividade em relação ao objeto litigioso – faz cessar a eficácia da sentença cautelar e, por conseguinte, inviabiliza a execução de eventual multa nela fixada. (REsp 1370707/MT, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 04/06/2013, DJe 17/06/2013)

Conclui-se, portanto, na esteira do entendimento do Superior Tribunal de Justiça, que a astreinte só será exigível em processo cautelar quando restar definitivamente reconhecido que o requerente da medida sagrou-se vencedor no processo principal. Não sendo mais devida a obrigação por impossibilidade de seu cumprimento absoluto, tendo em vista a sucumbência da requerente da medida nos autos da ação principal, extingue-se a incidência da multa cominatória e, por conseguinte, eventual cumprimento de sentença da multa.

Entendimento contrário culminará na concretização de uma situação inequânime e contraditória, em que a parte requerida, mesmo tendo razão já que a ação principal foi julgada improcedente, seria compelia a pagar multa ao autor, quando este nada mais fez do que ajuizar demanda que foi rejeitada pelo Poder Judiciário.

Da mesma forma, inaceitável seria que a parte vencedora da ação principal, após suportar o ônus de querela judicial, onde logrou provar que seu comportamento em nada feriu o ordenamento jurídico, ainda tivesse de arcar com uma multa cujo intuito era o de tornar efetivo um provimento judicial que se acabou mostrando indevido.

Dúvidas não restam quanto à impossibilidade de se liquidar e posteriormente executar multa fixada em sentença cautelar após a sucumbência no processo principal, porquanto, não obstante o processo cautelar ser autônomo, o seu único objetivo é garantir a utilidade do processo principal que, em seu desfecho final e definitivo, foi negado à parte autora o direito ao mesmo com julgamento de improcedência do pedido, não havendo, pois, razão para subsistir a execução da multa dela decorrente.

Fonte: HTJ advogados

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