Dra. Vanessa Jacob comenta sobre a intervenção judicial em caso de inércia do administrador público

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Da possibilidade de intervenção do Poder Judiciário na hipótese de inércia do administrador público: análise casuística a partir de recente precedente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais

Vanessa Elisa Jacob Ferreira

Não se olvida que constitui princípio retor do Estado Democrático de Direito o da separação dos poderes, que se encontra imantado no artigo 2º da Constituição da República de 1988, in verbis: “São poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.

Nesse quadro de referências, tem-se que restou estabelecido pelo legislador constituinte um sistema de freios e contrapesos entre os órgãos estatais com vistas a, em última análise, servir de garantia e proteção à esfera jurídico-subjetiva e libertária dos cidadãos, de modo a que haja respeito aos direitos fundamentais de base antropológica que formam o alicerce do Estado de Direito.

A Constituição de 1988 franqueou aos agentes do poder prerrogativas, atribuições e margem discricionária, bem como outorgou funções de soberania às instituições estatais, tudo de forma a se propiciar a efetividade desse mecanismo de separação e balanço de poderes e, via de consequência, a perenidade do Estado Democrático de Direito.

Para além disso, a Constituição vigente conferiu especial destaque ao Ministério Público, que tem por função precípua a de velar pelo equilíbrio entre os poderes constituídos, fiscalizando, destarte, a observância aos direitos fundamentais dos cidadãos (conferir, ‘verbi gratia’, artigos 127, ‘caput’ e parágrafo primeiro, e 129, ‘caput’ e incisos II e III).

Assim, ao Ministério Público incumbe a defesa “dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (art. 127, ‘caput’, CRFB/1988) e a promoção de ação civil pública “para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos” (art. 129, III, CRFB/1988).

Feitas essas considerações, tem-se que é o Ministério Público, portanto, parte legítima a pleitear em juízo, mediante ação civil pública, a salvaguarda de direitos coletivos ‘lato sensu’.

Ponto de elevada problematicidade, no entanto, é o concernente à possibilidade de se requerer, pela via da ação civil pública, a intervenção do Poder Judiciário na hipótese em que há omissão do Estado no cumprimento de deveres que o legislador constituinte lhe impôs, tendo em vista os princípios da separação dos poderes e da reserva do possível. Diante disso, indaga-se: É possível a intervenção judicial em casos tais sem que haja ofensa a esses princípios?

O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais em recente acórdão majoritário da lavra do Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator, Alberto Vilas Boas, decidiu que sim (conferir TJMG, 1ª C.C., Ap. Cív. nº. 1.0384.08.070114-5/001, Rel. Des. Alberto Vilas Boas, ac. 16/11/2010, DJe 03/12/2010). E o fez escorado em doutrina de escol e em jurisprudência abalizada do Pretório Excelso.

O caso paradigma versa, em suma, sobre ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais com o objetivo de imposição de obrigação de fazer ao Município de Leopoldina, no que tange à realização de obras de tratamento de esgoto residencial e industrial.

Segundo o ‘Parquet’, os cursos d’água que cortam a cidade encontram-se contaminados pelo lançamento dos efluentes, o que tem ocasionado mau cheiro, proliferação de animais vetores de doenças e inviabilização da utilização dos recursos hídricos, o que, indubitavelmente, compromete a qualidade de vida dos munícipes, sendo que a responsabilidade só pode ser debitada à negligência do administrador público ao longo dos anos, que deixou de observar as exigências de cunho constitucional e legal sobre o meio ambiente.

A sentença de primeiro grau julgou procedente a pretensão veiculada em sede de ação civil pública. O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, por sua vez, em reexame necessário, reformou parcialmente a sentença, “para fixar o prazo de 13 meses, a contar do trânsito em julgado, para que o Município cumpra as providências legais e dê início às obras, cuja conclusão deverá se dar em até 48 meses a partir de então; e excluir a condenação quanto ao pagamento de verba honorária; prejudicado o apelo voluntário”.

Por sua importância, colhe-se do voto condutor do aresto os seguintes excertos:

“Com efeito, não desconheço a existência de diversos precedentes no âmbito desta Câmara em sentido similar à tese defendida pelo recorrente e que consideram que o Poder Judiciário não pode compelir o Poder Executivo a realizar determinada conduta que é própria do gestor administrativo.

No entanto, entendo que este posicionamento será válido quando a pretensão contida na ação civil pública encontrar amparo em norma cujo conteúdo não seja imediatamente realizável, porquanto a manifestação legislativa assumiria feição programática e demandaria a prévia intervenção do administrador ou posterior complementação por lei ordinária.

Neste sentido, é conveniente salientar que a definição e implementação de políticas públicas é confiada primordialmente aos Poderes Executivo e Legislativo; mas, o Poder Judiciário não pode se demitir do encargo de avaliar se a omissão estatal coloca ou não em risco a integridade, a eficácia e a efetividade de direitos declarados no âmbito da Constituição Federal e da legislação infraconstitucional, consoante já decidiu a Suprema Corte em caso análogo (RE nº 436.996-SP, rel. Min. Celso de Mello).

Sim, porque a atual realidade constitucional exige que o administrador mantenha-se vinculado às políticas públicas estabelecidas na Constituição Federal e a extensão de seu poder discricionário não pode ser exageradamente ampla a ponto de inviabilizar o exercício de determinado direito pelo seu destinatário.

Em outras palavras, o exercício do poder político-administrativo não pode ser concretizado somente mediante a implementação dos projetos pessoais de quem gere a coisa pública, mas sim com os olhos postos nas prioridades estabelecidas pelo legislador constituinte e, de forma bastante significativa, pelo legislador ordinário.

É evidente que a implementação destes objetivos é onerosa, na medida em que será necessário ao administrador disponibilizar os recursos orçamentários correlatos.

Mas, afirmada judicialmente a inexistência de margem discricionária para o administrador omitir-se no cumprimento de norma que lhe impõe a tutela efetiva de determinado direito, não pode o Poder Executivo criar obstáculo que frustre o sentido da norma.

A supremacia plena do Poder Executivo como único executor das políticas públicas não pode ser aceita como uma fórmula pronta e acabada, sob pena de não ser possível ao Poder Judiciário arbitrar, na sua plenitude, os conflitos que se estabelecem entre o cidadão e o Estado quanto ao núcleo essencial de direitos fundamentais.

(…)

Claro, portanto, que a letargia administrativa no caso em julgamento revela que o poder público não se comporta de forma a reduzir o contraste entre o que prescreve a norma e a grave degradação ambiental noticiada, que afeta, inclusive e diretamente, a qualidade de vida de todos os munícipes, expostos a verdadeiras fontes de doenças.

Certo, ainda, que contraria à moralidade e legalidade administrativas o adiamento renitente quanto às medidas de prevenção que, necessariamente, devem ser adotadas pela Administração local, pois é dever jurídico desta evitar a degradação ambiental.

É razoável dizer, então, que a ausência de tratamento de esgoto residencial e industrial no âmbito do Município-réu é derivada da ausência de planejamento administrativo rigoroso e continuada negligência quanto à forma como será sanado o problema, ao longo do tempo.

Então, na medida em que o Município se omite em adotar medidas quer quanto à solução do problema quanto às residências e indústrias já instaladas, quer quanto à perpetuação do problema – no que tange a permitir novas ocupações e assentamentos se infra-estrutura básica –, é aceitável admitir que esta postura pode ser corrigida por via judicial, sem que, com isto, possa se falar em ofensa a qualquer dos princípios alegados pela parte, notadamente no que se refere à separação dos Poderes e reserva do possível.

Na essência, portanto, o que o autor deseja é que a Municipalidade de Leopoldina desenvolva, ainda que dentro de um quadro de carências diversas, um programa responsável de política pública que privilegiará toda a coletividade e preservará a integridade do meio ambiente.

Logo, a eficácia da Constituição Federal no que diz respeito a estes direitos não pode ficar subordinada a uma valoração arbitrária do poder público, especialmente quando a situação fática noticiada nos autos nunca foi diversa e não há perspectiva de modificação alguma, senão mediante a intervenção do Poder Judiciário.

(…)”.

Como contraponto ao voto do Excelentíssimo Desembargador Relator, tem-se o voto divergente, da lavra do Des. Revisor Eduardo Andrade, que, por sua vez, defende:

“não está o Poder Judiciário autorizado a se imiscuir na seara reservada à atuação do Poder Executivo, já que, como cediço, àquele Poder cabe apenas assegurar a legalidade, compreendida como o princípio que vincula a Administração Pública ao Direito, no qual se inserem os princípios constitucionais explícitos (moralidade, impessoalidade, publicidade, eficiência, isonomia) e os princípios constitucionais implícitos (razoabilidade, proporcionalidade, boa-fé objetiva, supremacia do interesse público), as normas constitucionais, legais e regulamentares, bem como a imprescindibilidade de atendimento às necessidades sociais em questão.

Assim, apesar do disposto no artigo 129,III da Constituição Federal, referente à legitimação do Ministério Público em sede de ação civil pública para buscar a tutela de interesses difusos e coletivos, não se pode pretender substituir, pela via judicial, o exercício das funções próprias dos Poderes Legislativo e Executivo, mormente se necessária iniciativa referente a orçamento público e estabelecimento das prioridades públicas (…)”.

Sem dúvida que a orientação esposada pelo voto prevalecente no precedente citado é a melhor, com a devida vênia do entendimento contrário, porquanto “a omissão do Estado – que deixa de cumprir, em maior ou menor extensão, a imposição ditada pelo texto constitucional – qualifica-se como comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental” (RTJ 185/794-796, Pleno, Rel. Min. Celso de Mello).

Fonte: HTJ advogados

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