Dra. Vanessa Jacob comenta sobre o incidente de resolução de demandas repetitivas no Novo CPC

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Breves notas sobre o incidente de resolução de demandas repetitivas

previsto no projeto do novo CPC

Vanessa Elisa Jacob Ferreira

Hodiernamente, tem-se vivenciado em diversos países um movimento de reforma tendente a promover a implantação de mecanismos legais hábeis a propiciar a entrega da prestação jurisdicional de forma célere, com vistas a atender aos reclames sociais, eis que se tornou corrente o soerguimento de vozes referenciando o brocardo ‘justiça tardia é justiça denegada’.

Assim, é cada vez mais frequente, sobretudo nos países de civil law (Europa Continental e América Latina), a consagração de filtros com o objetivo de conter a litigiosidade de massa, dentre eles, a eleição de um caso piloto, cujo julgamento repercutirá sobre o dos demais processos que versem questão de direito (tese) símile ao paradigma.

A sistemática atualmente vigente no Brasil conta com algumas ferramentas aptas à contenção do avanço de multifárias ações massificadas como, por exemplo, a previsão de súmula vinculante no âmbito do Supremo Tribunal Federal (art. 103-A, CRFB/1988), de repercussão geral da matéria constitucional em sede de recurso extraordinário (art. 543-A e 543-B, CPC), de julgamento de recurso especial por amostragem (art. 543-C, CPC), de súmulas de jurisprudência dominante e de julgamento do mérito da lide antes mesmo da citação do réu (art. 285-A, CPC).

Seguindo a linha já então vigente no Direito brasileiro, o projeto do novo Código de Processo Civil nº. 166/2010, que se encontra em fase de tramitação no Senado Federal, não só busca promover “o reforço da eficiência do regime de julgamento de recursos repetitivos” mediante “a possibilidade de suspensão do procedimento das demais ações, tanto no juízo de primeiro grau, quanto dos demais recursos extraordinários ou especiais, que estejam tramitando nos tribunais superiores”, consoante se denota inclusive da leitura da Exposição de Motivos do anteprojeto ora transcrita parcialmente, como também cria um incidente de coletivização, a que designa incidente de resolução de demandas repetitivas.

Esse novel instituto encontra inspiração no Direito alemão, mais precisamente na lei Kapitalanleger-Musterverfahrensgesetz (KapMuG), que versa sobre o processo modelo em controvérsias envolvendo o mercado de capitais. Essa lei tem por escopo dirimir questões litigiosas mediante decisão que servirá de modelo (=Muster) para o alcance da solução em diversas outras causas paralelas, o que se dará mediante a escolha de uma causa piloto, a qual será julgada apenas quanto a seus pontos comuns e/ou prejudiciais relativamente às outras. Esse procedimento propicia a intensa participação dos interessados e tem como aspecto salutar para a mitigação da problemática concernente à (in)observância do princípio do devido processo legal a divisão da cognição em duas fases: a) na primeira, somente os aspectos comuns são apreciados pelo Tribunal Regional (Oberlandesgericht); e b) na segunda, é que se abre a oportunidade para análise das especificidades de cada um dos feitos.

O regime alemão, por óbvio, não restou puramente transplantado para o Direito brasileiro, mas sim serviu de fonte para que o nosso legislador pudesse nele entrever um exemplo na “busca de dimensionamento do problema das ações repetitivas sem negligenciar as garantias processuais do modelo constitucional de processo” (cf. THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. Litigiosidade em massa e repercussão geral no recurso extraordinário. “Revista de Processo”. São Paulo: RT, v. 177, p. 9-46, nov. 2009, p. 41).

Segundo a dicção do artigo 895 do projeto de lei nº. 166/2010, será admissível o incidente de resolução de demandas repetitivas “sempre que identificada controvérsia com potencial de gerar relevante multiplicação de processos fundados em idêntica questão de direito e de causar grave insegurança jurídica, decorrente do risco de coexistência de decisões conflitantes”.

Referido incidente deverá ser instaurado perante o Tribunal local e dirigida a pretensão ao seu Presidente: a) seja por meio de ofício expedido pelo juiz da causa ou pelo relator (art.895, § 1º, I); b) seja mediante petição protocolizada pelas partes, pelo Ministério Público ou pela Defensoria Pública (art. 895, § 1º, II). Sua instauração e julgamento deverão ser amplamente noticiados e veiculados eletronicamente pelo Cadastro a ser criado pelo Conselho Nacional de Justiça (art. 896).

Caberá ao plenário do Tribunal ou ao órgão especial, onde houver, a realização do juízo de admissibilidade e o julgamento do incidente (art. 898, ‘caput’), sendo que a eficácia da decisão que o admitir ficará limitada à área de competência do órgão prolator, devendo o teor de mencionado decisório ser observado pelos juízes e demais órgãos fracionários no âmbito de sua competência territorial (art. 898, § 2º). Há a previsão de intervenção da figura do ‘amicus curiae’, que vem a ser o terceiro juridicamente interessado no deslinde da causa piloto ou processo teste, o qual poderá manifestar-se nos autos e sustentar suas razões da tribuna quando do julgamento, em respeito aos princípios do contraditório e da ampla defesa, corolários do devido processo legal (arts. 900, ‘caput’ e parágrafo único, 901 e 902, § 2º).

Julgado o incidente, estender-se-á a solução, isto é, a tese jurídica, a todos os demais processos que versarem idêntica questão de direito (art. 903). O prazo limite para a realização do julgamento é de seis meses, devendo o incidente ter preferência sobre os demais feitos, à exceção dos que envolverem réu preso e ‘habeas corpus’, porquanto por dizerem respeito ao valor liberdade têm prevalência sobre todos os outros processos (art. 894).

O recurso especial e/ou extraordinário aviado por qualquer das partes, pelo Ministério Público ou por ‘amicus curiae’, serão dotados de efeito suspensivo e, com relação à questão constitucional eventualmente discutida, haverá presunção de sua repercussão geral (art. 905, ‘caput’).

Por fim, se não for observada a tese jurídica firmada no julgamento, será cabível reclamação ao Tribunal competente, cujo julgamento deverá ser regulado pelo regimento interno do respectivo Tribunal (art. 906).

Em suma e à guisa de conclusão, afigura-nos certo que o caminho rumo à coletivização dos processos repetitivos é inevitável. Esperamos, contudo, que os aplicadores do Direito saibam aproveitar o momento para refletir e aplicar de modo inteligente o instituto, privilegiando a celeridade sim, mas também a qualidade da prestação jurisdicional que se deve franquear aos jurisdicionados. Anseia-se, enfim, que esse modelo que ora vem o novo CPC trazer possa contribuir, no breve porvir, para o respeito e a observância dos princípios constitucionais que devem nortear o processo civil contemporâneo na busca pela tão conclamada efetividade do direito material.

Fonte: HTJ advogados

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